terça-feira, 26 de abril de 2011

ASTROGILDO 47 ANOS: UMA ESCOLA, MUITAS HISTÓRIAS

      
      Farei uso desse espaço de diálogo e trocas sobre Barra Velha – entendido numa perspectiva de vida como nosso lugar comum, para falar um pouco, ou quem sabe, escrever uma breve narrativa sobre outro lugar comum dentro do lugar Barra Velha – a Escola de Educação Básica Conselheiro Astrogildo Odon Aguiar. Em breve estarei dialogando com a amiga Sônia sobre o tema que ela lança no comentário feito sobre minha última postagem – Educação e formação política das futuras gerações, com destaque para o papel das escolas que desempenham ou devem desempenhar essa função social fundamental. Mas isso será foco de outro debate, em outro momento. O tempo que me cabe hoje será para relembrar aspectos do passado com os pés fincados no presente como diria Ecléa Bosi, importante investigadora social nas questões que envolvem memórias e lembranças. 
            Segundo BOSI (1994[1]:52), “[...] na maior parte das vezes, relembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho”. É com essa perspectiva dialogal entre passado e presente, na direção de um trabalho reconstrutivo que delinearei algumas linhas lembrando e fortalecendo o que foi a escola Astrogildo em minha vida e o que ela ainda pode ser na vida de muitos outros.
            Uma narrativa, uma lembrança nunca vem sozinha. Ela surge sempre acompanhada de outros; sempre carregada de sentidos e significados produzidos pela presença de outras vidas, outros sujeitos, outras pessoas que compartilharam do que sentimos e vivemos. Nessa direção, alguns outros serão lembrados diretamente e outros, ainda, de forma indireta. Memórias e lembranças podem nos trair dado o tempo que elas reviverão, corro esse risco porque gosto e sempre me permiti a isso. Lembrar do Astrogildo é lembrar de um tempo de formação intelectual e de valores muito significativos; um tempo que me ajudou a construir outros tempos e espaços em meu viver.
            Minha história de estudante no Astrogildo, desenvolveu-se entre as décadas de oitenta e noventa. Fui aluno da quinta série ao terceiro ano do ensino médio. Um tempo considerável. Enquanto aluno do ensino fundamental de 5ª a 8ª séries lembro do grupo de teatro que criamos para ajudar a escola nos momentos difíceis; das festas; dos passeios a Laguna quando terminamos a oitava série e ao Rio de Janeiro, quando concluímos o ensino médio; das gincanas; dos torneios de vôlei e basquete, enfim, lembro do quanto minha infância, adolescência e juventude foram valorizadas nessa escola. Concordando com Hassmann, esses foram tempos de aprendência, tempos em que a escola não passou pelas nossas vidas, ela ficou fazendo parte do que somos.
            Por bom tempo fui líder de turma e sempre encontrei estímulo e apoio para sê-lo. Isso era marca também dos muitos professores que encontrei nessa escola, pelo modo como trabalhavam e agiam – professores-líderes e exemplos na profissão. Quero destacar de forma considerável (in memórian), a professora Rita de Cássia Coelho Ramos – querida, atenciosa, estudiosa, competente, exigente, rigorosa! Como aprendi com essa professora. Foi uma das regentes de minha turma e com ela aprendi a liderar. Quando foi estudar para Chapecó, eu enviava cartas dizendo como estávamos e que sentíamos sua falta na escola. Ela mandava alguns cartões dizendo como estavam seus estudos e que logo voltaria - os guardo até hoje. Escola boa é isso, por mais distante que estejam alunos e professores, não há como separar os vínculos estabelecidos, não há como separar os laços, as trocas, a dialogia que brota de um ensinar e um aprender que se leva para a vida toda.
            Hoje sou formado em Geografia com doutorado em Educação. Isso é parte das escolhas que fiz, mas também é parte da competência, do carinho e do afeto com que nos ensinou a professora Telma Bastos Régis. Querida, atenciosa e com um capricho que inspirava a todos. Sempre olhou nossos cadernos e deixava neles a sua marca, o seu registro, a confirmação de que estava presente e acompanhava nosso processo de aprendizagem. Ensinava Geografia de uma forma que nos envolvia; fazia sentir gosto, vontade, desejo de aprender cada vez mais. O Atlas que ela nos pediu para comprar na 5ª série eu ainda tenho, não poderia me desfazer de uma rica lembrança. Escola que potencializa os sonhos é assim, inspira os alunos a seguirem seus caminhos percebendo que eles são possíveis, desde que haja esforço e luta.          
            Carlos Drummond de Andrade[2] lança uma fabulosa pergunta em um de seus poemas: “E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E agora, você?” O poema continua e ele me ajuda a lembra do professor José Patrício, sempre nos pegando de surpresa com seus ditados e as leituras nos mínimos detalhes. Como eu gostava das aulas de língua portuguesa, pois via no professor e no modo de trabalhar, certa sintonia com o palavreado, o discurso, a dialógica. Eu gostava de ler, de participar das narrativas de aula. Era como se eu me perguntasse: “E agora, Valdir?” Não posso esquecer de quando ele ficou doente e fomos todos - alunos e nossa regente, na época a professora Telma, visitá-lo e dizer-lhe que voltasse logo. Aprender a língua materna sem o seu José Patrício não tinha graça. Escola que fascina é desse jeito, tem seu próprio jeito, seu próprio caminho, sua forma. Rita, Telma e José – eles tinham caminhos e formas de nos ajudar na aprendizagem que tornava a escola mais gostosa, mais viva, mais próxima.
            Essa forma ficava ainda mais bela, ainda mais envolvente porque havia na direção uma equipe maravilhosa. Como não lembrar da Dona Carminha? E a Dona Estela? Como esquecer a Dona Antonina? Enquanto gestora do Astrogildo no período em que lá estive, não consigo guardar outras lembranças a não ser da firmeza, da dedicação, do respeito, do olhar atento, da escuta comprometida, do direcionamento exigente e sistemático. Essas pessoas se completavam. Havia uma sintonia e um equilíbrio que nos ajudava a sentir segurança, nos ajudava a sentir bem. A Dona Antonina Damásio Ramos ficou gravada em minha vida de estudante e muito me inspirou enquanto professor em formação e profissional em atuação. Ela nos movia, mobilizava a dar conta das coisas, a encontrar por nós mesmos o caminho, a direção, a trilha a ser seguida. Escola capaz tem muitas perspectivas e comunga delas para servir de referencial, de eixo orientador para aqueles que a freqüentam. Tal era o Astrogildo.
            Outros nomes poderiam ser colocados nesta relação que a memória vai delineando. Dentre eles, jamais poderia esquecer de Dona Gercina. Nossa professora de matemática. Quando entrei na universidade fui procurá-la para me ajudar com a estatística. Ela se impunha, se firmava enquanto alguém que queria o nosso bem. Uma pessoa aberta e disposta a nos ajudar. Hoje, quando a encontro sinto o mesmo respeito, a mesma admiração. É o valor de um bom professor que se mostra pela dignidade, humildade e dedicação com que nos ensinou e nos ajudou. Lembro que ficávamos muito preocupados quando ela ficava doente e não podia ir para a escola. Dona Gercina era Dona Gercina, não poderia ser outra, não poderia haver outra. Única, singular, especial. Escola basilar é aquela em que os valores são trabalhados desde a relação aluno-professor-conhecimento - um sabe do valor do outro, um entende o quanto o outro é importante. Numa escola assim, o professor é gente, o aluno é gente, o diretor é gente; e gente não é bicho nem qualquer coisa.
            Espaços, tempos e formação se mesclam ao que muitos dos que estudaram nessa escola entre essas décadas são ou se tornaram. Nesse tempo, ficaram as saudades dos que se foram e as lembranças dos que nos marcaram. Outros nomes poderiam ser colocados aqui, pessoas que guardo com carinho, mas como a memória é seletiva, lembro apenas mais alguns: Professora Rose, Professora Rita Rodrigues, Professor Jairo, Professor Celso, Professora Elandi, Professor Nivaldo, professor Carlos, entre outros. E como esquecer das serventes, das pessoas que cuidavam do pátio da escola, da merenda, da limpeza? Para mim, essa gente, esses profissionais a exemplo dos outros que citei com mais detalhes, são pessoas que ajudaram a construir minha história, influenciaram minhas escolhas. São profissionais que ajudaram, nessas décadas citadas e posteriormente a elas, fazer do Astrogildo um bom lugar. Que outros alunos, outras pessoas que esta escola ajudou a formar, possam também, dizer do que ela significou, do que ela representou em suas vidas. Desses quarenta e sete anos de história escolar, eu pude viver enquanto aluno, pelo menos, sete anos.
            Uma escola que alavancou os sonhos de seus alunos sem classificá-los em ricos ou pobres; que os ajudou a acreditarem que seus ideias poderiam ser alcançados sem menosprezá-los por serem filhos de pescador ou de bancário; que entendeu que educação de qualidade se faz estando mais próximo da vida dos sujeitos que a freqüentam, é de fato, uma escola feliz. Assim foi o Astrogildo nesse período que estive por lá enquanto aluno e que muito me alegrou quando voltei a ela por pouco tempo, enquanto professor.
            Logo que terminei o ensino médio, após aquele momento lindo de formatura que foi preparado no ano de 1991, voltei na escola para me despedir dela, pois minha vida deveria continuar, minha história e minhas escolhas tinham que ser outras. Sentei em um dos bancos que havia perto de uma pequena árvore entre os pavilhões de salas e pensei nas experiências transformadoras ali vivenciadas. Eu não queria deixar minha escola, mas era preciso. Era necessário. Ela já tinha feito sua parte em minha vida. Ela já tinha contribuído com minha formação. Essa escola já tinha potencializado quem eu seria futuramente. Parabéns Astrogildo Aguiar! Parabéns Mestres do passado e do presente! Obrigado por ajudar aquele menino silenciado pelas lutas diárias a ser um vencedor! Como defendi em minha tese de doutorado, a escola é um lugar singular e vital, o lugar da experiência dos sujeitos. A escola é o espaço-tempo da experiência dos sujeitos, enquanto prática cognitiva, sócio-cultural e histórica. É uma experiência carregada de significados e intencionalidades; uma experiência multifacetada que deve ser olhada por dentro, “ad-mirada” em profundidade (NOGUEIRA, 2009[3]). Espero que, nessa perspectiva, outras histórias possam ser contadas na fluidez desses quarenta e sete anos.


NOGUEIRA, Valdir
Db.Nog. 


[1] BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
[2] Carlos Drummond de Andrade. Sentimento do mundo.
[3] NOGUEIRA, Valdir. Educação geográfica e formação da consciência espacial-cidadã no ensino fundamental: Sujeitos, saberes e práticas. (Tese de Doutorado em Educação – PPGE-UFPR). Curitiba, UFPR, 2009.