segunda-feira, 9 de maio de 2011

BARRA VELHA E QUALIFICAÇÃO DA VIDA: DESAFIOS DE UMA EDUCAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA E ASSISTENCIALISTA




“[...] Para mudar essa situação, na linha de uma gestão pública responsável e honesta quanto às várias dimensões do agir político, que você bem menciona, é necessário uma outra Educação, formal e não-formal [...] Portanto, urge a Educação mudar seu enfoque educacional, para formar as presentes e novas gerações a assumirem as lideranças futuras. Isso demanda que a Educação supere o discurso hegemônico, que postula a simples transmissão de conhecimentos sem problematizações [...] Precisamos de uma outra Educação que ajude as pessoas a serem atuantes em suas comunidades, visando à qualificação humana de seus lugares de moradia - isso significa participar dos espaços de decisão, exigindo condições de igualdade participativa nos bens e benefícios de cada comunidade, inclusive sob o ponto de vista socioambiental”. Contribuições de Careiro ao blog.


            “Leitinho, pãozinho e “santinho[1]” – proposta que continua a sustentar uma educação voltada à formação de massa de manobra. Tal qual o programa de formação técnica para “os pobres”, anunciado pelo programa governamental de Dilma[2], segue o programa leite e pão do governo barravelhense. A escola se torna palco de exposição da pobreza. Falta pão, falta leite, falta vaga para os pobres, façamos os programas e os coloquemos em evidência. Mais hegemônico[3] do que isso, só dois disso. Aliás, há muito mais. Famigerados programas que, ao invés de qualificarem a vida das pessoas, as oprimem colocando suas tarjas visíveis para alguns, invisíveis para outros – “Sou pobre, preciso de pão e leite e de vagas nas escolas técnicas, pois minha condição social não me coloca no páreo”. E assim, ano após ano a burguesia e a aristocracia capitalista e a enfadonha política da compensação e do assistencialismo vem tratando homens e mulheres, jovens e crianças nesse país. Isso é regra nas grandes e pequenas cidades.
            Barra Velha, assim se mostra com o programa “Leite e Pão Amigo”. Está estampado para quem quiser ver e ler no cartão ou na figura que ilustra o programa – “Leite e pão formando cidadão”. Escola e educação escolar estão aí, lado a lado com o hegemônico poder público. Ação que revolta e nos faz perguntar: a escola não deveria ser espaço de libertação dos homens? Com ela e por meio dela, a educação escolar não deveria lhes ajudar, em sendo homens livres, libertar a sociedade da opressão? Parece que voltamos no tempo. Desde quando pão e leite formam um cidadão? Que cidadania é essa que estão querendo formar? Aquela que se cala e se vende em tempos eleitoreiros?
            Se as condições de vida da população local fossem mais qualificadas – trabalho, segurança, saúde, saneamento básico; se a população dita necessitada e que precisa desses programas recebesse propostas de emprego, de colocação no mercado e no mundo do trabalho, seja formal ou informal, nas associações, etc. talvez as crianças não precisassem de pão e leite sendo distribuídos na escola e a escola, por sua vez, ocuparia seu precioso tempo e espaços em lhes garantir educação de qualidade, formação de suas competências e habilidades, desenvolvimento de sua cognição e de suas atitudes e valores. A escola os ajudaria a se perguntarem sobre esses programas e como, de fato, eles os ajudariam a ser melhores, a superar suas realidades de vida.
            Cabe destacar, nesse contexto a seguinte ideia encontrada no site da prefeitura municipal: “Os alunos da rede municipal de ensino também ganharão adesivos com o logotipo do programa, panfleto para os pais entenderem os objetivos do projeto e ainda o chamado “toy art”, um bonequinho em papel que será recortado e montado pelos estudantes como proposta pedagógica de fixação da marca” “Leite Pão Amigo[4]”. Usar ilustrações do programa como proposta pedagógica? Que proposta é essa? O que se entende, nesse contexto por uma proposta pedagógica voltada à formação de cidadãos? Esse é um exemplo claro de uma prática pedagógica e de uma estrutura educativa hegemônica, voltada à transmissão, repetição e reprodução do status quo
            Essa não é a finalidade para a qual a escola está na sociedade enquanto práxis cultural. Dá-se o pão e o leite na escola, mas a realidade em casa continua a mesma. Pais desempregados, casas sem as mínimas condições de habitar, saneamento básico insuficiente, saúde irregular etc. Formar cidadania no pleno sentido da palavra implica em levar os sujeitos – alunos, professores e comunidade a se engajarem na transformação social a partir de propostas pautadas na realidade de suas vidas, de empreendimentos e projetos que modifiquem, não só a vida das pessoas, mas também o contexto social onde vivem; a face da cidade, o modo como poderão se dirigir à escola e ao mundo. Talvez seja preciso se perguntar: qual o real papel da escola?
            Abrir-se à sociedade não significa gerar dependentes sociais e sujeitos a-críticos, marionetes nas mãos de quem detêm o capital. Se o programa tem uma função e se volta a crianças com problemas nutricionais, que se use o espaço da Secretaria da Ação Social para isso, mas não a escola. Não compete à escola esse trabalho. Ela pode sim, fornecer dados, auxiliar as demais secretarias, contribuir no mapeamento das dificuldades socioeconômicas da população, mas ela não é e não pode ser lócus dessas práticas. Escola é escola e educação escolar é educação escolar. Seu desafio está e deverá estar voltado a contribuir na formação de pessoas atuantes e mobilizadas com as necessidades de sua terra, sua pátria, seu lugar de moradia.
            A escola é espaço da formação de mentalidades contra-hegemônicas, capazes de criar outra cultura, outros modos de viver que sejam menos excludentes, é ainda, espaço para a formação de novas mentalidades na política, na gestão, na atuação pública em sentido de romper com esse jogo de clientelismo, do favoritismo. Nesta e em outras administrações isso já se tornou um hábito que causa revolta porque é com "pão e circo" - nesse caso, pão e leite - que se compra votos nessa cidade e em muitas outras cidades do Brasil. Pierre Bourdieu ajuda a entender bem isso que pode ser caracterizado como a prática da reprodução social, a violência simbólica agindo no imaginário social. É o que acontece, é o que se repete. É a forma da pseudoprática política instalada nos contextos de vida e que começam a se reproduzir desde a mais tenra idade.
            Nossas crianças e jovens, ao estarem nos espaços escolares, merecem e devem ser tratados como gente que tem potencial e, caso precisem de ajuda, que se somem esforços em outras instâncias, cabendo a cada uma delas fazer o que lhes compete. A criança ou o jovem vai para a escola não para ser taxado de pobre, de incapaz, de incompetente, de necessitado social etc., vai-se a escola para ser mais feliz por estar aprendendo a ser, verdadeiramente, cidadão. Isso causa indignação.
            Minha condição de pobre nunca me impediu de estudar ou de lutar por melhores condições de vida para mim e minha família. Não foi essa a escola que eu encontrei ao longo de minha formação primária e secundária em Barra Velha e nem agiram assim os professores e diretores que aprendi a admirar por me ensinarem a ver o mundo a partir de nossas óticas; a defender a vida e sua qualificação a partir de nossas crenças e sonhos.
            Para não finalizar, trago as palavras de Paulo Freire[5], que tanto me ajuda a ampliar o olhar sobre o que podemos fazer quando acreditamos que nossos sonhos são lindas possibilidades e, para mim, escola é isso - espaço de lindas possibilidades, não espaço de inculcação ideológica, de hegemonias e exposição das condições de vida dos sujeitos.


“O que não é porém possível é sequer pensar em transformar o mundo sem sonho, sem utopia ou sem projeto. [...] A transformação do mundo necessita tanto do sonho quanto a indispensável autenticidade deste depende da lealdade de quem sonha às condições históricas, materiais, aos níveis de desenvolvimento tecnológico, científico do contexto do sonhador. Os sonhos são projetos pelos quais se luta. Sua realização não se verifica facilmente, sem obstáculos. Implica, pelo contrário, avanços, recuos, marchas às vezes demoradas. Implica luta. Na verdade, a transformação do mundo a que o sonho aspira é um ato político e seria uma ingenuidade não reconhecer que os sonhos têm seus contra-sonhos. [...] A luta ideológica, política, pedagógica e ética a lhe ser dada por quem se posiciona numa opção progressista não escolhe lugar nem hora. Tanto se verifica em casa, nas relações pais, mães, filhos, filhas, quanto na escola, não importa o seu grau, ou nas relações de trabalho.” (FREIRE, 2000, p. 54-55).

            Pão e leite formando cidadãos é, para mim, um contra-sonho do que seja o que sonho enquanto escola possível para bem qualificar e educar as crianças e os jovens deste país e dessa cidade que nos pertence. Volto A Paulo Freire:

“Não posso aceitar como tática do bom combate a política do quanto pior melhor, mas não posso também aceitar, impassível, a política assistencialista que, anestesiando a consciência oprimida, prorroga, sine die, a necessária mudança da sociedade. Não posso proibir que os oprimidos com quem trabalho numa favela votem em candidatos reacionários, mas tenho o dever de adverti-los do erro que cometem. Da contradição em que se emaranham. Votar no político reacionário é ajudar a preservação do status quo” (FREIRE, 2000, p. 82).

          Talvez, enquanto sonho-possível para a educação escolar, devessem se projetar tempos-espaços de formação de pequenos e jovens políticos, a exemplo do que acontece em Portugal, nos plenários juvenis. Nossas crianças aprenderiam, desde cedo, a fazer política e desenvolver projetos pautados numa ética social e voltados à construção de outras formas de convivência e respeito à vida dos habitantes nos mais diferentes lugares. E, comprometidos com suas projeções e práticas, entenderiam que escola é lugar para se aprender a cuidar da vida e valorizá-la. Não é espaço para práticas opressoras. Se isso se coloca como sonho e como luta, a exemplo de Freire, Gandhi, Madre Teresa, Nelson Mandela, Darci Ribeiro, Anísio Teixeira e tanto outros, continuarei acreditando que essa luta é possível e esse sonho pode e deve ser realidade.  

NOGUEIRA, Valdir.


[1] Fonte: Portal Barravelhense. Acesso em 08 de maio de 2011.

[2] Pronatec (Programa Nacional de Acesso à Escola Técnica). O discurso em rede nacional é este - Programas que beneficiarão tanto os mais pobres como os filhos da classe média que cresce vigorosa em nosso país. São iniciativas que demonstram o compromisso especial que nosso governo tem com os pobres e com a classe média. Com os pobres, para garantir que subam na vida; com a classe média, para garantir que seu padrão de vida melhore ainda mais. Disponível em www.conversaafiada.com.br – acesso em 08 de maio de 2011.

[3] Souza (2005) “A hegemonia é constituída por um bloco de alianças que representa uma base de consentimento para a ordem social definida. Entretanto, quando os setores da sociedade não se identificam com os apontamentos da hegemonia estabelecida, eles manifestam sua contrariedade e reivindicam novas atitudes e posicionamentos tanto do poder público, quanto da sociedade civil”. Nessa direção, Williams (1979, p. 113) apud Souza, explicita as ideias de hegemonia em Gramsci (1995), afirmando que: “A hegemonia é então não apenas o nível articulado superior de ‘ideologia’, nem são as suas formas de controle apenas as vistas habitualmente como ‘manipulação’ ou ‘dominação’. É todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores –constitutivo e constituidor– que, ao serem experimentados como prática, parecem confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade para a maioria das pessoas na sociedade, um senso de realidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito difícil para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das áreas da sua vida”. Nesse sentido, para Souza, conforme o que discute Gramsci, “[...] a hegemonia seria a direção moral e intelectual de uma sociedade, onde a dominação “física” e corpórea é auxiliada pela instauração do consenso. O poder de coesão, conectado ao consenso, constituiria o predomínio de uma visão social de mundo e de convívio social.  O espaço da hegemonia é a sociedade civil, em que os chamados “aparelhos privados de hegemonia” são os responsáveis pela disseminação do pensamento dominante (COUTINHO, 1999). Cf. SOUZA, Rafael Rodrigues de. A mídia como aparelho privado de hegemonia. Disponivel em www.faac.unesp.br – acesso em 08 de maio de 2011.

[4] Disponível em: www.barravelha.sc.gov.br – acesso em 08 de maio de 2011.

[5] FREIRE, Paulo. Pedagogia da indgnação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.