A comunidade é um lugar híbrido em vários sentidos. Vou citar alguns: a) na cultura – a música, a dança, a cozinha, os contos, as lendas, os sítios arqueológicos (sambaquis), as tradições e crenças, enfim, as muitas formas com as quais o povo barravelhense viveu e vive as marcas que lhe são próprias, lhes dão identidade; b) na história – marcas deixadas pelos colonizadores e principalmente, pelos habitantes do lugar, expressos, por exemplo, na casa de palmito, na antiga igreja – hoje presente apenas na memória de alguns ou nas fotografias guardadas em acervos de algumas famílias tradicionais, nas esculturas colocadas ao longo das praias, no monumento do Morro do Cristo, nas heranças sócio-históricas lembradas pelos velhos, nas representações simbólicas e culturais do porto das canoas, nas reminiscências do passado que ficou como pistas para se compor o mosaico do que fora um dia essa comunidade-cidade; c) no meio ambiente – rico em paisagens naturais e sociais – da orla marítima aos mais longínquos recantos do interior, na fauna e flora que se conserva do pouco que resta de mata atlântica, no valor do solo fertilizado pelos rios, riachos e lagoa; nas praias e recortes do litoral, entre outras características bioantroposocioambientais encontradas nesse espaço vital; d) na sociedade – a formação do povo barravelhense – caracterizada em tempos e espaços diferenciados pela mobilidade em tempos de verão e inverno; pela organização econômica, política, cultural, pelos diferentes modos de viverem em comunidade – de um bairro ao outro, de um canto ao outro do município, pelo trabalho que desempenham, dando uma configuração própria ao que vemos e conhecemos como Barra Velha.
Essa hibridez pode ser mais ampla se considerarmos, nesse contexto, os saberes oriundos dessa composição socioambiental. Chamo atenção para os saberes populares e aqueles originários das experiências vivenciadas nos muitos espaços-lugares do lugar Barra Velha. Estejamos onde estivermos, seja na praça central, no costão dos náufragos, na praia do Grant, no interior onde encontramos engenhos de farinha ou roças artesanais, na colônia dos pescadores, nas rodas de conversa com os velhos moradores, vamos encontrar e nos depararmos com muitas experiências de vida.
Isso se torna ainda mais forte quando, por exemplo, pensamos nos saberes da experiência, próprios do que se vive nos dias de hoje no contexto da cidade e que, de certa forma, interferem nos modos de ver, entender e perceber Barra Velha como um lugar comum, como comunidade de destino, como espaço de pertencimento.
A narrativa que recebi há pouco tempo e que foi postada no blog, é contundente e reflete traços característicos de um saber-administrar que, em outros momentos deixou marcas profundas em muitos sujeitos barravelhenses. Uma experiência de trabalho público que retrata bem o que é viver a relação opressor-oprimido que Paulo Freire denunciava e denuncia em suas obras.
Dos saberes e fazeres em Barra Velha , apontados pelo leitor do blog, vou destacar alguns que considero fundamentais, ou dito de outro modo, fundantes no sentido de basilares em uma ética responsável com o lugar e as pessoas que nele vivem/habitam. Uma gestão em todos os âmbitos da máquina pública requer, no mínimo, cuidado com os graves erros já cometidos para que, como apontava outro leitor, a partir de Hans Jonas, possamos pensar um futuro mais seguro e promissor no contexto da cidade na qual moramos e pertencemos.
São eles: a) o saber-fazer-viver a cidadania, no sentido de fazer parte da construção do lugar, sentir-se agenciador e sujeito de escolhas e de proposições, de intervenção; b) o saber-fazer a política partidária e a política enquanto ação cognitiva democrática e libertária de modo a não vender o voto, mas assumi-lo como direito e instrumento de transformação; c) o saber-fazer compartilhado em termos de tomar decisões para, com e no lugar, sentido de não se pensar apenas para si, mas na coletividade, não impor decisões, mas discuti-las e assumi-las no coletivo; d) o saber-agir de forma responsável e comprometida com as instâncias político-públicas – escolas, prontos-socorros, postos de saúde, creches, unidades de turismo e cultura, diretorias etc.; e) o saber-respeitar a realidade sem deformá-la e alterá-la em pseudosdiscursos e pseudoações – sentido de trapacear, modificar o que é pelo que não é a realidade que se vive e se administra; f) o saber-fazer-construir a liberdade humana coletivamente ao invés de oprimi-la e torná-la diminuida, insignificante e descartável – sentido de negar as pessoas e sua liberdade de ação, de participação, sua voz e seu grito na sociedade; g) o saber-fazer-segunça no sentido de que as pessoas vivam, convivam e sintam que estão em um lugar que lhes dá segurança, lhes faz sentir-se seguros sem lhes tirar o sossego – sentido de não viverem coagidos, represados; h) o saber-fazer econômico-político, respeitando e valorizando os sujeitos, as pessoas nos seus estados de vida e de participação; esses e outros tantos podem ser ampliados a partir do que o leitor, atento ao blog, definiu como educação ecológica, como reinvenção da arte da política.
É fundamental que se pense e entenda que o fazer político em uma dada realidade não se caracteriza apenas como ato eleitoreiro ou como ação mecânica de votação/eleição de alguém ou alguns. Ela é, antes disso, atitude de governança de si mesmo e que se transforma em ação de responsabilidade por si e pelos outros.
Uma ação que não pode negar-se os vários níveis de REFLEXÃO, ANÁLISE e COMPREENSÃO da realidade onde se vive. Considero imprescindível que os sujeitos, os cidadãos barravelhenses pensem na direção de um saber-fazer-agir politicamente referenciados, que busquem indagar, questionar, problematizar suas realidades de vida. Esconder-se é negar-se, e a negação de si mesmo produz continuidade de formas de agir que não faz bem e não produz um bem-viver socioambiental. Pensar Barra Velha enquanto ato de saber-fazer não está fechado numa linearidade cartesiana de um dizer SIM ou NÃO, pelo contrário, é ação de quem se faz presente por sentir que pertence e habita um lugar que lhe é comum, não é só seu, mas de muitos outros.
NOGUEIRA, Valdir.
Db.Nog.