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Desde o final da década de 1959 – quando defendeu a tese “Educação e Atualidade Brasileira”, até sua morte em 1997, Paulo Freire sempre destacou em seus escritos as relações entre opressores e oprimidos na educação, com ênfase nas estruturas políticas e econômicas de ideologias alienantes e promotoras dos mass media. Também focava essa problemática socioeducativa na relação professor-aluno, direcionando o olhar a uma educação que ele caracterizou como bancária e autoritária, voltada a reforçar e produzir sujeitos fáceis de comandar; doutrinados e habituados a práticas reprodutivistas.
Esse segundo aspecto das denúncias freireanas, em parte, já está sendo superado no campo educativo. No entanto, o primeiro aspecto, de modo geral, ainda salta aos olhos, dado seus novos formatos e maneiras de interferir e influenciar o como se vê professores, escola e alunos e o que se quer deles. Um dado fundamental da teoria de Freire, nesse contexto da relação entre oprimidos e opressores, se destaca quando ele chama a atenção para o fato de que tal relação tende a ser mais agravante quando os oprimidos se tornam opressores.
Na educação escolar, por exemplo, isso pode ser identificado na relação gestores-educadores, quando educadores passam a ser gestores e tratam os professores como peças de seus conchavos político-partidários. Ou ainda, na relação professor-professor quando uns criticam os outros, ou desqualificam os colegas em suas lutas. A opressão toma rumos que desestabiliza o trabalho docente e alimenta o desejo do não-querer estar, não-querer ser e não-querer agir enquanto profissional da educação. Os professores são levados a perder o desejo, a vontade e a força que os mobiliza a estar nos espaços escolares. Enquanto educador que fui de rede pública municipal, foram vários os momentos que presenciei a coação e o exercício do poder via dispositivos de opressão nos espaços escolares: do “caderninho vermelho” aos comandos de obediência das ordens de acato às amarras político-partidárias – não pode fazer greve, não pode se expor, não pode defender seus valores, não pode falar – e nossas vozes, muitas vezes, foram silenciadas; não pode isso ou aquilo. O não-poder era o que alimentava o pseudopoder opressor. Ficava-se a mercê de determinadas formas de ação contraproducentes e ilegais que inibiam e desestabilizavam todo e qualquer professor comprometido com uma educação politizada e cidadã.
Quando fui aluno, também enfrentei momentos de produção do medo no espaço escolar – quem não temia o velho “caderno preto”, caso fizesse algo que não se adequava aos padrões e normas da escola? Ele colocava disciplina? Qual? Aquela da ditadura? Autoridade não pode ser confundida com autoritarismo. Mais um dispositivo de poder – falso poder. Um dispositivo de opressão que um dia esteve presente nas escolas e hoje, se faz presente nas memórias dos processos de escolarização. Talvez não se use, nos dias de hoje, os cadernos pretos, mas se usa do diário de classe, das provas, das ameaças, enfim, os dispositivos também mudaram, mas as intencionalidades continuam sendo aquelas da opressão.
Talvez tenham abolido os cadernos vermelhos, mas continuam a utilizar das ameaças de demissão, da perda dos cargos comissionados – formas outras de controle e de silenciamento de vozes; talvez continuem obrigando os professores a fazer acordos que neguem seus valores e sua ética. As políticas educativas e as formas de agir com e a partir delas parece que mais tem se qualificado como políticas de opressão do que de libertação do trabalhador da educação – o professor e, com ele, os sujeitos-alunos que deveriam estar apreendendo a agir de forma politizada num contexto de vida democrática.
Em outro sentido e sem entrar numa dimensão de saudosismo, pois nem vivia em tal época (entre os anos 20 e 50), mas tentando resgatar os valores implícitos na história do fazer docente nesse país e em suas terras, houve um tempo em que o professor era o senhor professor; houve um tempo em que ele podia ter sua biblioteca particular, comprar seus livros, dispor de tempo e de espaço com qualidade para pensar suas propostas educativas; houve um tempo em que o professor podia viajar para o exterior e usar de suas experiências para ampliar o universo cultural de seus alunos etc. Mas, como se costuma dizer e esse dizer tem validade, os tempos mudam e mudam mesmo!
Hoje o professor tem que escolher entre comprar o leite para os filhos ou o livro de que precisa para sustentar seus planejamentos; tem que optar entre fazer uma viagem de ônibus (porque de avião não dá) para uma cidade próxima onde mora (porque para uma cidade longe custa caro) como forma de descanso ou guardar/juntar o dinheiro para pagar as contas de água, luz e saneamento básico; se no passado recebia maçãs e flores, hoje recebe chutes, socos, desaforos e tratamentos brutais e covardes. Mudou muito o tempo, mudou muito a sociedade e o mundo, mudou muito o modo de ver e tratar os professores. E essa mudança tem causado uma série de aspectos negativos na vida, no trabalho e na saúde docente. A opressão e o desrespeito vêm produzindo a desistência e o enfraquecimento desse campo profissional.
Wanderley Codo deixa isso bem claro em sua pesquisa – “Síndrome do Burnout”, quando afirma que os professores estão perdendo a vontade, o desejo, o ânimo para continuar na profissão e muitos deles, ao invés de freqüentar as escolas, passam a freqüentar hospitais e clínicas psiquiátricas para tratamentos de depressão, medo e traumas do que sofrem nos espaços escolares. Será que é isso que queremos para nossa sociedade? Será que é assim que devemos agir com as pessoas que se dedicam no trabalho de formação de nossas crianças? Todos nós queremos mudanças. Queremos uma sociedade mais justa, um mundo melhor, uma cidade com qualidade e condições de vida digna, uma escola séria com um trabalho docente sério, mas parece que nos esquecemos de querer que as pessoas, os sujeitos que lidam com a educação – em específico, os professores, sejam tratados com respeito, com valor e com seriedade. Seria muito bom se um dia, desses muitos dias de luta dos professores por salários dignos e condições justas de trabalho, a sociedade, a comunidade, a população que tanto reclama, os ajudassem em suas causas e exigissem dos nossos governantes, lado a lado, os seus direitos.
A gravidade da greve não é a ausência dos professores em sala de aula. Até com a greve se deve ensinar e aprender o que é cidadania, o que é democracia e o que é o direito a ter direitos. Ela mostra o quanto a sociedade está vivendo uma normose, um estado de letargia. A greve mostra a paralisia sociocultural que atinge a todos, principalmente quem prefere cruzar os braços e ver de camarote o esforço dos poucos docentes que resistem e insistem em suas crenças e lutas, ou aqueles que continuam agindo na lógica da opressão, inibindo, coagindo e desqualificando os profissionais. O dia em que o país parar e a sociedade toda se mobilizar por qualidade na educação, talvez as coisas comecem a mudar. Infelizmente as gerações atuais ainda são aquelas vitimas do medo, da repressão e da opressão. Não está na hora de uma reação?
Pós-escrito
Esse texto colocado no blog em que discuto algumas questões sobre Barra Velha é em sentido de dizer que estou junto e apoio os colegas professores que persistem em lutar pela vida e pelo trabalho com qualidade. Respeito os professores que estão atuando normalmente, mas nesse momento, abraço a causa daqueles que tentam fazer com que suas vozes sejam ouvidas.